O eruv divide o público do privado, o secular do sagrado e o trabalho do shabat. O presente ensaio pretende entender como as tradições da cultura judaica se atualizaram ao longo dos séculos e convivem hoje com a dinâmica da metrópole, deixando marcas identitárias no espaço urbano. Ou seja, buscamos aqui o tensionamento entre as relações de comunidade, identidade e pertencimento, que constroem outras leituras, compressões e compartilhamentos nos espaços públicos da cidade.
Durante esse ensaio alguns conceitos serão trabalhados. Dentre eles, o conceito de shabat e o conceito de trabalho. O shabat, nada mais é que o dia de descanso e rito espiritual – o sétimo dia da semana; tendo início na noite da sexta-feira e terminando ao nascer da primeira estrela no sábado, com duração de 25 horas. Durante este período há uma série de 39 trabalhos proibitivos de serem realizados, como é o caso do carregamento de objetos entre espaços públicos e entre espaço privado para espaço público e vice-versa. Ou seja, é a partir dessa proibição que as comunidades judaicas ortodoxas desenvolveram e aperfeiçoaram o conceito de eruv.
Segundo o dicionário de Cambridge, o eruv pode ser definido como uma estratégia para estender simbolicamente o espaço privado da casa ao domínio público das ruas e calçadas. Mais que isso, o eruv é uma maneira de transformar propriedades da cidade contemporânea que são consideradas carmelit (espaços públicos) em uma grande propriedade particular (reshut hayachid) com intuito de promover o carregamento de objetos durante o período do rito - shabat.
Tendo isso em vista, como então o eruv se instala nas cidades? E, a partir deste momento, como ele modifica as dinâmicas das comunidades ali presente? Se faz importante mencionar que o judaísmo possui diversas compreensões sobre o espaço, essas que se distanciam das relações binárias ocidentais entre público-privado. As definições judaicas de espaços são definições religiosas, pois seguem as interpretações rabínicas sobre os textos bíblicos, dessa forma os espaços judaicos podem ser divididos em duas categorias principais.
Em primeiro lugar estariam os reshut harabin que são, por definição, os espaços públicos. Suas características principais se sustentam por ser uma rua ou avenida a céu aberto de aproximadamente 7 metros de largura, cruzando a cidade de ponta-a-ponta e com passagem diária de cerca de 600 mil pessoas. Um espaço considerado reshut harabin na cidade de São Paulo seria, por exemplo, a Avenida Paulista. Em segundo lugar estariam os reshut hayachid que são, por definição, os espaços privados. Suas características principais se sustentam por serem quaisquer espaços que tenham 10 punhos de altura (aproximadamente 80 cm) e 4x4 amot (aproximadamente 1,92x1,92 metros) de dimensões.
Pela compreensão bíblica se sustentar em apenas duas definições, os estudiosos da lei religiosa tiveram a necessidade de criar outras duas definições complementares de espaço - sendo elas os espaços carmelit e o makom patur. Ambas as definições surgem ao se notar que as definições principais entre público e privado não conseguiriam definir todos os espaços de uma cidade, e que, também, limitaria a possibilidade de cumprir a lei do carregamento no shabat. Nessa lógica, os espaços carmelit são uma pequena variação dos espaços públicos, mas que ainda não possuem, segundo a definição religiosa, todas as suas características. Ou seja, são espaços que não percorrem a cidade de uma ponta a outra e que não há uma passagem diária maior que 600 mil pessoas. Tais espaços são, por exemplo, ruas internas de bairros, ou uma pequena vila de casas. Já os makom patur são considerados os espaços neutros. E são, por definição rabínica, os espaços que possuem 10 punhos de altura, mas que ainda não possuem a área necessária para se tornarem um espaço privado. Os makom patur são, por exemplo, as caixas de energia encontradas em ruas e calçadas, ou os postes de fiação elétrica.
Tendo esse amplo horizonte conceitual em vista, a ação proibitiva do shabat se sustenta em transportar algo desde um ambiente particular a um ambiente público ou vice-versa. Porém, ao se criar novas definições de espaços (como é o caso dos espaços carmelit e o makom patur) os núcleos comunitários ortodoxos judaicos podem transportar objetos entre espaços que são considerados carmelit para espaços privados sem que nenhuma lei religiosa seja comprometida. O eruv, dessa maneira, surge por meio da necessidade da comunidade e pelas discussões e interpretações rabínicas das leis religiosas primárias. Dessa maneira, além do eruv permitir o ato de carregar no dia santo do shabat, o mesmo ainda delimita espaços comunitários e as zonas de pertencimento dentro da cidade.
Assim sendo, o eruv, na atualidade, nada mais é que uma demarcação real e imaginária de uma certa territorialidade da cidade contemporânea, onde se há a grande concentração de moradores da comunidade judaica ortodoxa. Materialmente, as regras para a sua implementação exigem que o eruv seja fisicamente estabelecido por meio de um tsurat hapetach – que é definido enquanto um portal ou uma porta; e que, seja estabelecido na cidade em forma de arcos. Dessa maneira, tal demarcação não deve ser vista como neutra, mas entendida enquanto uma forma ativa de marcadores sociais, comunitários e de pertencimento ao grupo ortodoxo. Isso porque alguns limites são intransponíveis, fazendo com que haja o interesse de incluir pessoas que moram em determinados lugares para que possam ir a sinagoga ou realizar almoços e jantares de shabat na casa de parentes e/ou amigos.
Em suma, o eruv se dá por meio do compilado de tsurat hapetach, que limita e delimita o espaço. Ou seja, fisicamente o eruv é uma conexão entre os lados paralelos de ambas as calçadas por meio de dois postes e um fio de nylon que os conecta. Essa conexão entre as duas calçadas paralelas e a junção com os muros, gradis e portões dos prédios e construções da cidade (por meio dos limites de lotes) faz com que esse espaço urbano seja fisicamente, imageticamente e simbolicamente fechado, ou seja, se torne particular e que, assim, permita a realização das premissas do shabat, mantendo a comunidade.
Tendo isso claro, nos direcionamos para a segunda pergunta. Afinal, o que o eruv significa para as comunidades judaicas ortodoxas? Além de propor uma nova interpretações sobres espaços, demarcações e territorialidades da cidade, o eruv é um marcador legal de pertencimento comunitário e permitem com que, a partir do ato do carregamento, se possa nascer uma nova comunidade, agregando diversos indivíduos que seriam excluídos das sinagogas no dia de descanso e rito sagrado pelo simples fato de serem idosos, deficientes, mães com filhos pequenos e crianças de colo.
Ou seja, sem o artifício do eruv, mulheres (sendo elas: mães, irmãs, avós, tias) não poderiam sair de suas casas com seus filhos de colo para a ida à sinagoga. Assim, como também seria inviável a ida cadeirantes e idosos, que necessitam de objetos como suas bengalas e/ou cadeiras de rodas para fazer os deslocamentos entre os espaços.
Para além da delimitação de um espaço expandido, em que os rituais do shabat possam acontecer de maneira religiosamente segura, o eruv se mostra enquanto um fortalecedor de uma comunidade, no sentido mais amplo dessa afirmação. Isso porque, viver em comunidade, segundo Luiz Antônio Simas, "representa a agregação de diversos elementos em busca de objetivos comuns”, ou seja, criar e manter conexões. As proibições do shabat não preveem a imprevisibilidade durante o período do rito. E, dessa forma, o eruv surge enquanto uma resposta a essa questão, pois apresenta possibilidades da vida comunitária durante este período. Sendo assim, o artifício do eruv permite que as trocas sejam maiores, que as pessoas possam compartilhar momentos e experiências, como a ida de mulheres, crianças, deficientes e idosos para a sinagoga - símbolo máximo de participação da vida judaica comunitária.
O texto Arquitetura dos Intervalos, de Francesco Bosch, traz um exemplo muito feliz sobre a vida comum em sociedade; este é o caso do vão livre do MASP, projetado pela arquiteta Lina Bo Bardi. Durante um estudo preliminar, a arquiteta faz um croqui ao qual a sua própria arquitetura está em segundo plano, dando espaço para que desenhos de brincadeiras e atividades lúdicas, inseridas no espaço do vão, ganhem destaque em primeiro plano. Mais que nada, a intenção do desenho é representar tais espaços enquanto locais de indeterminabilidade, espaços esses que podem abrigar o imprevisível e o improgramável, livre para as possibilidades que ali venham a ocorrer. Bosch, ao descrever o espaço do vão, comenta o seguinte: “[...] nesse lugar, permite-se contestar a ordem, promover encontros, agregar diferenças…”. Logo, pode-se entender que os termos, ‘contestar a ordem’, ‘promover encontros’, ‘agregar diferenças’, se aplique ao eruv. Porém, claro, de formas diferentes. Já que, enquanto o vão livre do MASP têm como pressuposto abrigar essas indeterminabilidades por meio de um espaço amplo e aberto, o eruv necessita delimitar-se, fechar um espaço para que a vida comunitária, religiosa, tradicional e cultural judaica possa acontecer em seus momentos de rito.
Para finalizar, a existência do princípio comunitário é essencial para as comunidades judaicas. Dessa forma, elas se apropriam da vida comunitária e da vivacidade de seus indivíduos para compreender em seu íntimo as miudezas da vida, do dia-a-dia, aquelas que se mostram enquanto fantasias, como passear com o filho de colo, poder levar um casaco nos braços para eventuais ventos, recolher uma flor no meio do caminho.
Em resumo o eruv pode ser explicado de três maneiras: simbolicamente, religiosamente e praticamente. Simbolicamente o eruv é uma estratégia sancionada para estender o espaço privado da casa para as ruas e calçadas públicas. Religiosamente o eruv é a premissa que permite o carregamento de objetos entre espaços públicos e privados, e vice-versa, durante o rito do shabat. Praticamente o eruv se sustenta por meio da tshurat hapetach, esse que são dois postes presos nas calçadas paralelas, de forma bem rente à construção ao lado, com um fio nylon passando em suas extremidades, os conectando. E como então, o simbólico, o religioso e a prática moldam a dinâmica e a vida ortodoxa judaica nas cidades e no contexto contemporâneo - condicionando e tensionando conceitos a partir de demandas comunitárias reais.
O ensaio aqui exposto é fruto das discussões e pesquisas ocorridas durante o segundo semestre de 2021, por meio da disciplina de Estúdio Vertical da Escola da Cidade, e sob orientação do Prof. Vinícius Spira.
Referências bibliográficas
- BOSCH, Francesco Perrotta. A Arquitetura dos Intervalos. Revista Serrote. Disponível em: https://www.revistaserrote.com.br/2013/12/a-arquitetura-dos-intervalos-por-francesco-perrotta-bosch/. Acesso em: 25 nov. 2021.
- FLUSSER, Vilém. Ser judeu. Annablume; São Paulo, 2011.
- SANTOS, Isabel Arco Verde. ERUV: A Heterotopia judaica. Principia, n 41. Rio de Janeiro.
- TOPEL, M. F. (2021). O "eruv" na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil: novas estratégias de demarcação do espaço judaico. Cadernos De Língua E Literatura Hebraica, (10), 153-164. https://doi.org/10.11606/issn.2317-8051.cllh.2012.53661.
- WEISS, Abraham. THE ERUV: A microcosm of the shabat spirit. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/23259468?read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents. Acesso em: 10 nov. 2021.